Considerada a maior rivalidade da história da Fórmula 1, a disputa entre Ayrton Senna e Alain Prost teve diversos capítulos entre 1984 e 1993, período no qual os dois competiram simultaneamente na categoria. Alguns momentos evidenciaram o lado calculista e racional do francês, como a polêmica decisão de campeonato de 1989, na qual ele provocou deliberadamente um acidente com Senna. Em outros, a pilotagem incandescente do brasileiro fez a diferença, deixando bem claro quem era o mais rápido na pista. Às vezes, não apenas rápido, e sim mágico. Foi o caso daquele 11 de abril de 1993, no asfalto molhado de Donington Park, na Inglaterra. Quinto colocado após a largada e com um carro tecnicamente inferior ao do pole Prost, Senna fez uma série de ultrapassagens em locais improváveis e precisou de menos de uma volta para alcançar a liderança. Uma exibição de gala que, 20 anos depois, ainda encanta os fãs de todo o mundo.
Considerada “a maior primeira volta da história” por muitos especialistas, a primeira das 76 passagens completadas pelo brasileiro nos 4.023 metros do circuito inglês deu o tom do que viria pela frente. Com uma McLaren bem inferior às Williams e com um motor menos potente que o da Benetton de Michael Schumacher, Senna fez apenas o quarto tempo no treino classificatório, a 1s7 de Prost. Na largada, foi espremido pelo alemão sobre uma zebra e caiu para quinto, atrás da Sauber de Karl Wendlinger, que se aproveitara da situação.
Senna começou, então, seu show. Livrou-se de Schumi com facilidade e desceu o trecho seguinte lado a lado com o austríaco, que tinha a preferência da curva à frente. Mesmo sobre a pista molhada, o brasileiro acelerou por fora, despachou a Sauber e foi à caça de Damon Hill. Não demorou muito – menos de 40 segundos desde a luz verde – para superar o britânico antes de ir à caça de Prost. Acuado, o francês tentou espremer o brasileiro na penúltima curva do circuito, mas já era tarde. Com autoridade, a McLaren vermelha e branca assumiu a primeira posição. Um desempenho que assombrou os jornalistas que trabalhavam naquela prova, como a dupla de transmissão da TV Globo, testemunhas de um feito histórico.
Só o Ayrton Senna seria capaz de uma vitória assim naquela circunstância"- Não tive dúvida nenhuma de que estava vendo algo histórico, porque tive uma corrida inteira para raciocinar sobre isso. Só Ayrton Senna seria capaz de uma primeira volta, a mais fantástica que um piloto fez na história, e de uma vitória assim naquela circunstância. Eu disse ao engenheiro dele no fim da corrida “definitivamente, desse planeta ele não é”. E o cara falou: “disso eu nunca tive dúvida” – relembra Galvão Bueno, que narrou a prova direto do autódromo de Donington Park.
- Convivendo no dia a dia com o Senna, o que mais me impressionava nele era sentir o quanto ele sabia que era bom, que ia chegar ali e ser dos melhores. Tinha certeza absoluta disso. Aquela primeira volta nem me chamou atenção como algo extraordinário, pois eu sabia que estava para acontecer a qualquer momento. Foi só uma confirmação – frisa Reginaldo, que cobriu de perto os oito títulos mundiais do Brasil na F-1.O detalhe irônico é que a imprensa inglesa havia criticado ferozmente a escolha desta pista, alegando que não havia pontos de ultrapassagem para carros de Fórmula 1. O comentarista Reginaldo Leme também participou da transmissão da TV Globo em Donington Park. E revela uma espécie de surpresa às avessas com o espetáculo apresentado por Ayrton Senna naquela tarde chuvosa. Para o jornalista, a certeza a respeito do próprio talento fez o tricampeão mundial guiar com maestria, carregado de uma confiança extrema.
De fato, Senna foi impressionante naquela edição do GP da Europa, que acabou sendo a única prova de Fórmula 1 realizada na pista de Donington. Depois de assumir a primeira posição, o brasileiro mostrou perícia na chuva e também em outro tipo de situação que ele dominava como poucos: a variação climática. Quando todos estavam com pneus para pista molhada, ele percebia que, com certo cuidado, já era possível andar de slicks. E parava nos boxes para trocar, levando vantagem sobre os demais. Depois, antevia que a chuva estava para se intensificar e colocava um novo jogo de pneus “biscoito” em seu carro. Daí, quando a água caía para valer, ele já estava contornando tranquilamente as curvas enquanto os outros patinavam.
Mais tarde, a pista tornaria a secar, obrigando uma nova troca. Com a volta da chuva, veio a opção por uma nova estratégia: em vez de trocar pneus, Ayrton se manteve na pista usando slicks, com um controle fantástico do carro.
Mas lidar com o clima não foi a única cartada de mestre do brasileiro naquele dia. No terço final da prova, Senna também fez uma experiência que surpreendeu muita gente, só que poucos se deram conta imediatamente do que ele estava fazendo. Em meio a tantos pit stops por causa das idas e vindas da chuva, o piloto entrou no box em um momento que a McLaren não estava pronta. Todos imaginaram alguma falha na comunicação via rádio, mas a verdade era outra. No circuito de Donington, a curva de entrada dos boxes é menor do que a curva que leva à reta principal. Como naquela época não havia limite de velocidade no pit lane, ao contrário de hoje em dia, o brasileiro usou este artifício para ganhar tempo na pista. Galvão reproduz as palavras que ouviu de Senna após a prova.
Vocês não entendem nada. Eu sabia que por ali era mais rápido"
Ayrton Senna, sobre o 'atalho' em Donington Park
- Eu me lembro de ter dito na transmissão: “alguém errou”. E no fim da corrida aparece como a volta mais rápida a que ele deu dentro do box. Eu perguntei: “você ficou louco?”. E ele: “Vocês não entendem nada. Eu sabia que por ali era mais rápido, eu fiz para experimentar. Quando me informaram que era a melhor volta da corrida, eu falei ‘OK, se o Prost passar à minha frente, eu vou passar ele por dentro do box’. Só isso”. Ele tinha essa genialidade de, no meio daquela água, naquela confusão, pensar nisso. Foi a primeira vez que um piloto pegou um atalho numa corrida – relata Galvão Bueno.
A melhor volta da prova foi 1s3 mais veloz que a de Damon Hill, segundo mais rápido naquele dia e também o segundo colocado na corrida. Hill foi o único que não levou ao menos uma volta de Senna antes da bandeirada final, mas terminou a 1m23s do brasileiro. Mesmo parando quatro vezes para trocar pneus, Senna deixou Prost em terceiro, uma volta atrás, ajudado pelo fato de que o francês, perdido com a inconstância da chuva, havia parado sete vezes. Uma verdadeira humilhação para o então tricampeão, franco favorito ao campeonato daquele ano, que no fim da temporada conseguiria, enfim, assegurar seu quarto título.
Se o companheiro de Prost se deu bem para cima do parceiro consagrado em Donington, o mesmo não se pode dizer de Michael Andretti. Trazido dos Estados Unidos como estrela da Indy na tentativa de popularizar a F-1 em território norte-americano, o companheiro de Senna na McLaren abandonou a corrida exatamente durante o show do brasileiro na primeira volta, após uma colisão com Wendlinger. Campeão mundial de 1978, o pai de Michael soltou uma frase emblemática a respeito do abismo entre Ayrton e os demais pilotos em meio ao jantar comemorativo promovido pelo proprietário do time, Ron Dennis, e regado a “muito vinho e muita gargalhada”, segundo Galvão Bueno.
- Naquele dia me coube sentar à mesma mesa onde estava o Mario Andretti, que tinha ido dar uma força para o Michael. E o comentário dele foi mais ou menos assim: “como é que meu filho vai fazer para acompanhar um cara desse?” – conta Galvão.
- Naquele dia me coube sentar à mesma mesa onde estava o Mario Andretti, que tinha ido dar uma força para o Michael. E o comentário dele foi mais ou menos assim: “como é que meu filho vai fazer para acompanhar um cara desse?” – conta Galvão.
Donington foi palco do primeiro teste de Senna com um F-1
Para Reginaldo, a exibição de Senna em Donington Park em 1993 imediatamente trouxe recordações de outra visita que ambos haviam feito àquela pista dez anos antes. Em julho de 1983, ainda como piloto da F-3 Inglesa, Senna foi convidado por Frank Williams para testar um carro de Fórmula 1 pela primeira vez. Único jornalista presente ao teste, o comentarista não se esquece de alguns detalhes emocionantes do primeiro encontro de um gênio com o seu maior objeto de desejo. Tudo captado pelas lentes do repórter cinematográfico Sérgio Gilz.
Circuito rende homenagens em museu temático
Mesmo não recebendo mais um GP de Fórmula 1, Donington Park continua sediando provas de outras categorias, especialmente dos torneios britânicos de automobilismo. Não por acaso, o autódromo abriga também um museu que atrai milhares de fãs anualmente, ainda mais depois que a pista ficou conhecida em todo o mundo como o palco de uma das maiores exibições da carreira de Ayrton Senna. O brasileiro é lembrado logo na entrada do circuito, com uma estátua em tamanho natural posicionada diante de outra do argentino Juan Manuel Fangio, pentacampeão mundial na década de 1950 e grande ídolo de Ayrton.
A relação de Senna com este autódromo é perceptível também no acervo de carros de corrida, macacões e capacetes expostos no museu. Lá estão as McLarens de seus três títulos (1988, 1990 e 1991) e uma Toleman guiada pelo brasileiro em sua temporada de estreia, em 1984. Além, evidentemente, da McLaren de 1993 com a qual Ayrton Senna se mostrou rápido feito um raio debaixo da chuva inglesa. Dizem que raios não caem duas vezes no mesmo lugar. Contudo, Senna provou que eles podem, de vez em quando, ultrapassar vários carros na mesma volta.
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